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sexta-feira, 12 de abril de 2013

GENEROSIDADE: UMA PERSPECTIVA JUDAICA


Este texto surgiu a partir de um convite feito
por um amigo que está desenvolvendo um projeto
junto a estudantes de psicologia que visa aprofundar
 o conhecimento sobre o psiquismo humano,
 explorando não apenas os chamados sete pecados
 capitais, mas abordando também o que poderíamos
 chamar se “sete virtudes capitais”. Tal iniciativa é
 interessante, dentro outros aspectos por destacar para
 os estudantes que não podemos estudar a psiché
humana somente por meio daqueles aspectos que
 poderíamos chamar de problemáticos ou patológicos.
 O homem é também, mas está além, digamos assim,
 de seus transtornos mentais.
Outro aspecto interessante do convite está relacionado
 ao fato de ter solicitado para mim, um psiquiatra judeu,
 para escrever sobre a temática da generosidade.
 Interessante, pois seu oposto a avareza, tem sido ao
 longo dos séculos acintosamente associada ao povo
 judeu. A associação entre avareza e os judeus está
 presente tanto nas “inocentes” piadas de salão como
 nos mais ácidos e ferinos discursos que buscaram e
 buscam legitimar o anti-semitismo, em suas diferentes
 manifestações ao longo da historia.
Com isto posto, gostaria de explicitar que neste texto
 teremos a seguinte questão norteadora: Como poderíamos
 compreender a noção de generosidade a partir de uma
 perspectiva judaica? De antemão esclareço que
 a expressão “uma perspectiva” não quer denotar a idéia
 de que haveria uma e apenas uma perspectiva
 judaica, mas de fato, justamente o inverso. Possivelmente
 devem existir várias perspectivas (não esqueçamos
 aquela velha máxima, “onde há dois judeus há no mínimo
 três idéias”), e aqui explorarei uma delas, bem particular, a minha.
A estratégia metodológica que vou utilizar aqui se inspira,
 por mais estranho que isso possa parecer, na experiência
 que adquiri durante o trabalho de campo de minha tese
 de doutorado, quando morei cerca de oito meses
 em uma comunidade indígena denominada Iauaretê,
 localizada na fronteira entre o Brasil e a Colômbia, ocasião
 na qual eu estava estudando as relações entre juventude
 indígena, uso de álcool e violência. Em Iauaretê,
 a grande maioria das pessoas era pelo menos bilíngüe,
 falando português e Tukano. Entretanto, de forma usual os
 indígenas ao falar português entremeavam seus discursos
 com palavras em Tukano. Em muitas ocasiões, os indígenas
 conheciam termos correlatos em português, mas utilizam
 expressões em Tukano. Manter termos em Tukano
 parecia demarcar a diferença conceitual em relação a
 expressões similares em português, podendo ser
 entendida como uma estratégia para manter
 significados nativos mais refinados. Quem observa
 judeus falando, nos mais diferentes idiomas pode
 perceber, sem muitas dificuldades, a utilização
 recorrente de palavras em hebraico, como shalom.
 É claro que judeus americanos ou brasileiros conhecem
 as palavras peace ou paz. A utilização do shalom se
 deve não apenas pelo desejo de explicitar uma
 identidade coletiva, mas, sobretudo, porque shalom
 além destes sentidos tem outras significações, e a
 tradução faria perder um pouco, se não muito,
 da idéia que se queria expressar ao usar esta
 palavra no idioma nativo.
Devo confessar, não sem certo grau de mal estar,
 que meu domínio do hebraico talvez seja apenas um
 pouco melhor do que o meu ínfimo conhecimento do
 Tukano. Tal como fiz em minha tese, tentarei explorar
 palavras-conceito e não fazer uma análise semântica
 mais aprofundada, exercício que declino em nome dos
 doutos conhecedores destas línguas.
Fazer uma transposição de conceitos não é um
exercício fácil. Muitas vezes, para uma única
 palavra numa língua, precisaremos de várias em
 outra. Não sei dizer se haveria uma única palavra em
 hebraico que pudesse ser usada para traduzir a
 palavra generosidade. Aqui, tentarei fazer esta
 transposição (mais do que tradução) associando o
termo generosidade a três expressões ou palavras-conceito
 em hebraico, bem como tentarei explicar para o leitor
 alguns aspectos mais sutis das mesmas, que entendo
 como centrais para compreensão de seu significado no
 universo judaico.
Uma primeira delas seria tsedakah. Muitas
 vezes esta palavra é traduzida de forma não
 muito adequada para o português como caridade.
 Dela se aproxima na medida em que está
relacionada à idéia de doar algo a alguém
 que está necessitado. Mas dela se distancia,
 na medida em que se trata de uma obrigação/
preceito religioso (mistvah). De modo simplificado,
poderíamos dizer que uma pessoa que faz caridade é
 considerada uma pessoa boa, mas quem não faz, não
 se torna mal por isso. Já em relação a tsedakah, o
 judeu que não a pratica esta sendo injusto e até mesmo
 ignorante. Simboliza este ponto de vista o fato que toda
 vez que um judeu come algo ele deveria dizer uma
 benção mais ou menos assim: “Bendito seja tu Eterno
 nosso D-us reino do universo que criaste tal tipo
 de alimento”. Isto parte do entendimento de que tudo
 que há no mundo não é nosso, é de D-us. Se
 fomos aquinhoados com algo a mais devemos
de algum modo partilhar. Não é a toa, que a palavra
 tsedakah compartilha o mesmo radical das palavras
 tsedeke (justo) e tsadik (sábio).
Assim, quem faz tsedakah não deve esperar
 nada, visto que está simplesmente cumprindo uma
 obrigação. Inclusive há uma tradição que uma das
maiores tsedakot (plural de tsedakah) seria executar
 os cuidados funerais a partir da liturgia judaica
 para aquela pessoa que faleceu, pois o morto se foi
 desta vida e não poderá retribuir. Desta forma, tsedakah
 se associa a outra palavra-conceito, chessed, em geral
 traduzida por bondade, que é considerado um
 atributo divino. No universo judaico, quando se fala
 em chessed, logo vem a mente a figura do patriarca
 Abraham. A tradição ensina que Abraham mantinha
 as laterais de sua tenda sempre aberta no deserto,
 de modo que sempre poderia avistar viajantes
no deserto, e neste caso poderia convidá-los para
 descansarem, beber e comer com ele. Inclusive
quando ele fez sua própria circuncisão (em hebraico,
 brit milah, aliança da carne) aos 99 anos de idade,
 no seu, digamos assim, “pós-operatório imediato”
 ficou na sua tenda esperando viajantes. E não foi a toa,
 que neste dia recebeu viajantes na forma de homens,
 que seriam anjos, que dentre outras coisas lhe
contaram que em breve sua idosa esposa, Sarah,
 iria lhe dar um filho.
Por outro lado, a tsedakah feita com chessed deve
 servir a um propósito. Conta uma anedota, que as
vésperas do Iom Kipur (Dia do Perdão, dia em que
 segundo a tradição os homens são julgados por
 D-us) o rabino de uma sinagoga informou aos presentes
 que como os pecados deles eram muito grandes,
eles precisariam fazer um tsedakah de um milhão de
 dólares. Dias depois o rabino disse: - “Consegui resolver
 metade dos nossos problemas”! Então alguém teria
 comentado: - “Então só precisamos fazer uma tsedakah
 de 500 mil?”. E o rabino respondeu: - “Não, eu já
 descobri para quem poderemos doar”! A idéia aqui implícita
 é que não é doar por doar, nem doar apenas porque
 se é (ou se quer ser) bom, mas para participar do tikum
olam, algo como que poderia ser traduzido como concerto
 do universo. Para entendermos um pouco a intrínseca
 correlação que há entre tsedakah-chessed -tikum olam,
 penso que devemos
 recorrer a “exemplos” divinos. Por mais paradoxal que possa
 parecer, entendo que a expulsão do homem do paraíso
 seria um exemplo paradigmático desta interação. A punição
 foi, antes de tudo, uma espécie de dádiva. Corrigir
 a desobediência do homem, um ato de doação da
 sabedoria divina, foi feito com chessed, na medida
em que tirou o homem do paraíso e o colocou no
nosso mundo imperfeito, dando a seres humanos
a possibilidade de sermos parceiros de D-us no
concerto/melhoramento deste mundo. Permanecendo
 para sempre no Paraíso, um lugar perfeito,
 onde nada precisava ser concertado, o homem não
 teria como participar do tikun olam. Para explicar esta
 questão, alguns fazem alusão a um diálogo que teria
 ocorrido entre um imperador e um sábio judeu.
O imperador teria perguntado: - “O D-us de vocês
é bom e sábio”? O judeu respondeu: - “Sim, claro” !
 E, continuou o imperador: - “Então ele criou um corpo
 humano perfeito. Então porque vocês judeus profanam
 esta obra, fazendo, a circuncisão”? Nisto o sábio teria
respondido: - “Não, não! A questão é que você não
entendeu. D-us é tão bom, tão perfeito e tão sábio,
 que nos fez com um pequeno defeito, para que nós,
 desde pequeninos, aprendamos que temos que
participar junto com Ele do concerto do universo”!
Enfim, retornando a nossa pergunta norteadora.
 Penso que uma boa uma perspectiva judaica sobre
 generosidade seria aquele fizesse uma articulação,
 mais ou menos assim de certas palavras-conceito:
 doação sábia e justa (tsedakah), realizada com
 bondade “desinteressada” (chessed), com o
 propósito de participar do melhoramento/concerto
 do mundo (tikum olam).
Shabat Shalom!

Maximiliano Ponte 

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